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Maria Carlota de Carvalho e Quintanilha nasce em Coimbra a 11 de Novembro de 1923. Segunda filha do cientista Aurélio Pereira da Silva Quintanilha e da bióloga Maria Suzana de Carvalho, herda o nome da avó paterna. Quando tem cinco anos, os pais divorciam-se. Entregue à responsabilidade do pai, a sua infância é marcada pelo percurso deste. Aurélio Quintanilha vive uma situação profissional difícil: a sua oposição política ao Estado Novo reflecte-se na instabilidade profissional que assinala a sua carreira a partir da segunda metade dos anos de 1930, impedindo-o de prosseguir com as suas investigações académicas em Portugal e obrigando-o ao exílio em França. Antes disso, entre 1928 e 1931, leva a família para a Alemanha. A filha Maria Carlota junta-se-lhes dois anos depois, tornando-se fluente em língua alemã. Lucya Tiedtke, sua segunda mulher, acaba por ter uma forte influência na formação das duas filhas de Aurélio Quintanilha (para lá da irmã Maria Cecília Quintanilha, existem ainda dois meios irmãos – Alexandre Quintanilha, da parte de pai; e Jorge Manuel de Carvalho Almeida Dias, pela mãe). Em 1935, o afastamento de Aurélio Quintanilha da Universidade de Coimbra leva-o a Paris, onde permanece até 1941. As filhas partem mais tarde, ficando inicialmente em Coimbra. Com a guerra, as duas irmãs regressam a Portugal, indo viver com a mãe, professora no Liceu Feminino Filipa de Lencastre, onde Maria Carlota Quintanilha termina os estudos liceais.
     Indecisa entre Matemática e Desenho, Maria Carlota Quintanilha opta por estudar Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa. Sente uma certa hostilidade, entre o meio académico lisboeta, pela sua condição de mulher. Vai então para o Porto, em 1948, com duas colegas, concluindo aí o curso e defendendo o CODA (Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquitecto), em 1953, com 17 valores. À época, a prestação de provas por uma estudante de Arquitectura é um acontecimento. É numa “sala cheia de rapazes”, como recorda, que apresenta um Jardim Infantil para Vila Real. O projecto demonstra uma inclinação muito forte pela arquitectura moderna, organizando-se de forma modular, recorrendo a coberturas em abóbada e a grandes superfícies envidraçadas. Na memória descritiva expõe um conhecimento sólido sobre as tendências então recentes do desenho de espaços infantis que privilegiam as perspectivas motora e emocional da criança. Antecipam-se também aqui algumas características que, quando exercidas nos trópicos onde Maria Carlota Quintanilha se fixa a meio da década de 1950, têm sido conotadas com a cultura brasileira que os portugueses cultivam nestes anos.
     É no ambiente escolar no Porto que conhece João José Tinoco, um ano mais velho, com quem casa em 1953 às vésperas de embarcarem para África. No Porto, cidade ainda conservadora nos anos de 1950, Maria Carlota Quintanilha “destaca-se de toda a outra população feminina na escola”, segundo o arquitecto José Luís Tinoco, seu futuro cunhado.
     Casada, o seu destino é acompanhar João José Tinoco até ao sul de Angola, onde este assume o cargo de arquitecto-chefe da Brigada Técnica de Fomento e Povoamento do Cunene. Os trabalhos desenvolvidos por Tinoco durante esta comissão de serviço, que se prolonga até 1956, são conhecidos e foram inventariados por António Matos Veloso, José Manuel Fernandes e Maria de Lurdes Janeiro no estudo monográfico dedicado ao arquitecto (João José Tinoco: arquitecturas em África, 2008), designadamente a Central Eléctrica do Biópio e dois blocos de habitação colectiva em Sá da Bandeira (actual Lubango), que Matos Veloso confirma ter tido a colaboração de Quintanilha. A presença de Tinoco na Brigada Técnica do Cunene insere-se nas políticas de colonização das regiões interiores de Angola por populações europeias através da criação de colonatos de inspiração rural. As casas são construídas e os colonos migram. Mas Maria Carlota Quintanilha ressente-se da ausência de vida urbana.
     Entretanto, Aurélio Quintanilha instala-se em Moçambique ainda em 1943, como director do Centro da Investigação Científica Algodoeira da Junta de Exportação do Algodão Colonial. Maria Carlota Quintanilha recorre, em segredo, ao pai, solicitando-lhe que intervenha no sentido de encontrar colocação para o casal em Lourenço Marques (actual Maputo). Parte em 1956, antes de Tinoco, dando continuidade a uma carreira de professora, iniciada ainda no Porto, em 1952, no Liceu Nacional Rainha Santa Isabel. Na capital de Moçambique ministra Desenho e Geometria Descritiva em vários graus do ensino secundário e em diversos estabelecimentos (Escola Industrial, Escola Comercial, Escola Preparatória do Ensino Secundário General Joaquim José Machado, Escola Preparatória Feminina de Lourenço Marques e Liceu de António Enes). É neste contexto que se cruza com futuros arquitectos moçambicanos, caso de Luís Lage, seu antigo aluno.
     Maria Carlota Quintanilha considera actualmente a actividade docente como a mais representativa da sua carreira profissional. Embora arquitectos seus contemporâneos em Moçambique afirmem ter testemunhado a sua parceria com Tinoco, abstém-se agora de qualquer protagonismo. O reconhecimento da sua importância é todavia sugerido tanto entre o grupo profissional afecto ao casal Quintanilha-Tinoco – onde se destaca Matos Veloso – como, fora deste círculo mais próximo, por Pancho Guedes, p. ex..
     Mas nem sempre Maria Carlota Quintanilha se distanciou do trabalho realizado com Tinoco. Em currículo elaborado já depois da Revolução de 1974, quando se encontra ao serviço do Ministério da Educação e Investigação Científica (e que consta do seu processo individual de funcionária pública), elenca uma série de projectos, destacando precisamente os que desenvolve com o marido, no período em que permanecem casados e com residência em Maputo. Na impossibilidade de consulta dos projectos moçambicanos, recorre-se neste texto às atribuições sugeridas por Matos Veloso (Veloso; Fernandes; Janeiro, 2008), por André Faria Ferreira (Obras públicas em Moçambique: inventário da produção arquitectónica executada entre 1933 e 1961, 2008) e por Elisiário Miranda (De Maputo à Beira: uma “selecção moderna”, 2010). Cruzando esta informação com o já citado currículo da arquitecta, enuncia-se aqui um percurso possível de enquadramento para a obra de Maria Carlota Quintanilha.
     No seu currículo, Maria Carlota Quintanilha omite qualquer projecto em Angola, situando em Moçambique todos os trabalhos de arquitectura realizados. Três são planos urbanos, executados com Tinoco (João Belo, Inhambane, e Maxine). Da parceria com o marido, confirma ainda serem os Palácios dos Governos dos Distritos e Repartições do Niassa (Vila Cabral, actual Lichinga, c. 1961) e de Cabo Delgado (Porto Amélia, actual Pemba, 1965-1970); e o Instituto do Algodão de Moçambique, Sede e Casa-Tipo. Contam com a co-autoria de Alberto Soeiro na Sede dos Serviços de Aeronáutica de Maputo e na Aerogare de Nampula. Veloso, Fernandes e Janeiro afirmam que também são da responsabilidade do casal Quintanilha-Tinoco a Aerogare de Porto Amélia e o Pavilhão da Agricultura na Exposição das Actividades Económicas de Moçambique, de 1956, provavelmente um dos primeiros trabalhos em que se envolvem em território moçambicano.
     Esta produção desenvolve-se ao longo de uma década, a partir da chegada de Tinoco a Maputo. Os projectos inserem-se no Estilo Internacional, reflectindo soluções na adaptação dos seus princípios às especificidades das regiões tropicais. Correspondem à afirmação generalizada de uma linguagem moderna nos edifícios públicos coloniais que se consolida com o final da década de 1950, prolongando-se até às independências africanas. Entre a geração que escolhe África, formada na transição da década de 1940 para 1950, como é o caso de Maria Carlota Quintanilha, Le Corbusier, a arquitectura da América Latina e alguns arquitectos, como Richard Neutra, mantêm-se como referências, distanciando-se assim da cultura revisionista que emerge na, então, Metrópole.
     Em 1966, quando Matos Veloso está novamente em Maputo, iniciando uma colaboração com Tinoco que culmina na criação do atelier A121 em 1974 (integrando também o arquitecto Octávio Rego Costa), e continuada mais tarde em Lisboa, com Maurício Vasconcelos, Maria Carlota Quintanilha está em processo de afastamento do marido, desenvolvendo projectos com outros colegas. É possível que as obras identificadas no seu currículo como exclusivamente da sua autoria, tenham sido desenvolvidas entre este período e 1972, ano em que se encontra já em Lisboa. Maria Carlota Quintanilha aponta, então, o Instituto de Investigação Agronómico de Moçambique (IIAM), para o qual desenvolve o estudo urbanístico e assina as adaptações, ampliações e alterações dos edifícios existentes; a criação de uma Casa-Tipo também para a Moçambique; o Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria (SNECI) e uma estância de repouso na Namaacha. Menciona, ainda que genericamente, obras para particulares.
     O regresso a Portugal coincide com a integração nos serviços do Estado. Para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, elabora, entre 1972 e 1973, estudos arquitectónicos onde privilegia a sua experiência de trabalho em climas quentes e regiões tropicais. Progride no funcionalismo público enquanto arquitecta do Ministério da Educação a partir de 1973, projectando ocasionalmente. O seu nome surge relacionado com projectos como a elaboração de estudos prévios para ampliação de equipamentos escolares com pré-fabricados leves, para localidades como Pinhal Novo, Faro ou Olhão (1986). Durante a década de 1980, faz projectos de intervenção em equipamentos escolares preexistentes. Estas obras, contudo, não reflectem o seu pensamento arquitectónico como declara em entrevista ao JA. João José Tinoco morre em 1983. Em 1989, Maria Carlota Quintanilha requer a aposentação do Ministério da Educação. Vive em Lisboa com saudades de África. |

* com Ricardo Lima. A preparação deste texto contou com entrevistas a Maria Carlota Quintanilha, António Matos Veloso e José Luís Tinoco.


Epílogo de uma arquitecta em África

O contributo de Maria Carlota Quintanilha é ambíguo para a comunidade dos arquitectos portugueses. António Matos Veloso recorda que sendo “a sua obra pouco expressiva” em quantidade, é difícil fazer “uma avaliação do que teria sido se efectivamente Maria Carlota Quintanilha não tivesse enveredado pela actividade escolar”, colocando bem o problema. A dificuldade em fixar claramente o seu percurso profissional, identificando as obras em que trabalhou (em pareceria com João José Tinoco ou com outros arquitectos) revela os embaraços que se colocam à mulher arquitecta durante o período do Estado Novo. É, então, expectável que se comporte como uma “mulher de arquitecto” e não exactamente como “pioneira em África”, descrição justa e aquilina, confirmando-se a sua participação plena nas obras que lhe são atribuídas. Mas o facto da sua personalidade permanecer hoje pouco estudada, também revela o actual estado da arte.
A sua educação, marcada pelo trajecto de Aurélio Quintanilha e por uma família onde tradicionalmente as mulheres detinham formação superior, dota-a todavia de capacidades que lhe permitem superar algumas das convenções do tempo. Significativamente, Matos Veloso vê-a como possuidora de “um acentuado grau de profissionalismo, sem tendências a desvirtuar a obra e honesta a projectar”; provavelmente, as mesmas palavras que usaria para descrever um compagnon de route.

AVM


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